Antes desse dia podemos afirmar que foi Manuel Gourlade que
permitiu a existência dessa vontade colectiva indómita.
NOTA INICIAL: No final do texto em NOTA FINAL o seu registo de baptismo e o que dele disseram Cosme Damião (em 1945), Daniel dos Santos Brito (em 1950) e Mário de Oliveira/Rebelo da Silva (em 1954). Esses depoimentos, o de 1945 e 1950, são de quem o conheceu e conviveu com ele alguns anos, por isso elucidativos da sua importância para a existência do Clube.
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Eterno! Obrigado! Glorioso! |
Foi ele que
teve uma ideia que levou à fundação do Clube, ou seja, à Ideia
E isso ocorreu porque além de futebolista (defesa à esquerda)
também era interessado em tudo o que girava à volta do jogo e das equipas para
o jogarem. Foi ele que se lembrou de juntar aos miúdos de Belém ávidos por
jogarem futebol à experiência de uma geração anterior, já homens feitos, com
renome entre os poucos futebolistas desse tempo, com outro tipo de avidez, a de
vencer e com meios - futebol nos pés e na cabeça - para isso, os casapianos que
brilharam nos campos de Lisboa e Carcavelos na última década do século XIX.
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Como se dizia em Portugal era tudo ali à mão. Porta com porta e porta para um pátio |
Gourlade
surge, para todos nós, em 1903
Mas muito caminho trilhara desde que nascera no bairro da
Ajuda, na rua da Paz n.º 118, pelas onze da manhã de 25 de Outubro de 1872, ou seja, tinha 28 anos
aquando da mudança do século XIX para o XX. Fica para outro dia fazer uma
pequena biografia pormenorizada deste extraordinário exemplo do Benfiquismo. O
melhor é encontrá-lo a jogar, por volta de 1902 ou início de 1903, no Verão
deste ano certamente, com o seu companheiro de emprego na Farmácia Franco,
Daniel Santos Brito e os miúdos que habitavam no mesmo prédio onde estava
instalada a citada farmácia, que tinha um pátio interior onde se conseguia
jogar. Mas com o número de entusiastas a aumentar depressa o pátio minguou ou
os futebolistas entulharam o espaço. A solução foi passar a futebolar nos
logradouros que eram múltiplos entre o bairro de Belém e a linha de caminho de
ferro Cais do Sodré - Cascais e até para lá desta à beira Tejo.
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Football Club, Grupo de Belém ou Catataus em 1903. As equipas eram fotografadas com a disposição em campo. Da esquerda para a direita: Em cima, os defesas e guarda-redes: José Cruz Viegas, José Rosa Rodrigues (guarda-redes e capitão) e MANUEL GOURLADE; Ao centro (médios): Jorge Afra, Carlos França e Daniel Santos Brito; Em baixo (avançados): Duarte José Duarte, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Raul Empis e Armando Macedo |
Nos jogos
defesa à esquerda no Football Club (Belém)
Não lhe são reconhecidos grandes dotes como futebolista,
talvez por se interessar tardiamente pelo «jogo-jogado» (trintão sem passado de
adolescente como futebolista) mas quanto ao «jogo-pensado» e ao modo de afirmar
um novo clube não há melhor. Consta que num domingo, talvez 29 de Novembro de
1903, o FC (Belém) lançara um desafio ou foi desafiado por um dos mais
competentes grupos da época, o Grupo dos Pinto Basto ou FC Swifts (velozes, rápidos). Os
miúdos do clube de Belém lá foram entusiasmados, pois o adversário era
respeitado, e entre os dois empregados da Farmácia Franco (o balconista Daniel
Santos Brito e o contabilista Manuel Gourlade) e os três irmãos Rosa Rodrigues
(José, Cândido e António) estava meia-equipa. A outra meia era dos amigos
destes, que eram popularmente designados por Catataus. O jogo foi intenso mas
saldou-se por uma derrota tangencial, talvez 0-1 ou 1-2, no local logradouro
onde era habitual, em Lisboa, jogar-se depois da proibição de o fazer no Campo
Pequeno, com a construção da Praça de Touros: as Terras do Desembargador, às
Salésias.
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A equipa do Grupo dos Pinto Basto/FC Swifts (Velozes)/Internacional/CIF na escadaria da Quinta Nova, em Carcavelos. Poucos eram os grupos de futebol que conseguiam que os ingleses do Carcavellos Club aceitassem os seus reptos ou desafios |
Como era
normal quem perdia podia pedir desforra
E era no conjunto destes dois jogos - desafio ou repto e
desforra - que se apurava o vencedor se o vencido pedisse desforra. A não pedir
servia só um jogo. O Football Club pediu desforra mas surpreendentemente, até
pela aproximação ao Natal, período religioso e frio em que não se jogava,
Gourlade solicitou ao capitão do FC (Belém) José Rosa Rodrigues que pedisse
desforra a Eduardo Pinto Basto, capitão do FC Swifts, para daí a 15 dias
(talvez 13 de Dezembro) e não para o domingo seguinte. Como era questão de
honra o adversário vitorioso, embora provavelmente estranhasse haver um domingo
"em branco" pelo meio...aceitou.
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Onde tudo se passou e rapidamente. A - Terras do Desembargador, às Salésias onde se jogava. Foi nesse espaço, em finais de 1903, que o Football Club (Belém) perdeu com o Grupo dos Pinto Basto/FC Swifts e foi nesse mesmo espaço que o mesmo grupo reforçado com casapianos da "Associação do Bem" os venceu e na euforia da vitória foi decidido fundar um clube, o "Glorioso"; B - o bairro de Belém (com o prédio da Farmácia Franco e o seu pátio interior, o Café do Gonçalves e o António das Caldeiradas) muito maior que na actualidade pois parte dele foi desmantelado para fazer a "Exposição do Mundo Português", em 1940; C - A "Cerca da Casa Pia" onde treinavam aos domingos, os ex-alunos da Real Casa Pia de Lisboa e onde Gourlade os foi procurar para reforçar o Football Club no jogo-desforra com o FC Swifts; 1 - O local de treinos mais utilizado, entre as traseiras da Casa da Praia do Duque de Loulé e a linha férrea; 2 - os terrenos em frente ao Mosteiro dos Jerónimos problemático por conflituar com o Jardim fronteiriço ao Mosteiro; 3 - Os areais entre docas para lá da linha férrea (em 1903/1904) menos regularizados que aquando desta fotografia que é posterior; 4 - Os terrenos menos utilizados por conflituarem com o Palácio de Belém e a azáfama do bairro que incluía um importante mercado especializado em ter bom peixe; 5 - Os terrenos do Hipódromo de Belém (citados por Eça de Queirós, em "Os Maias") embora excelentes - até mais para o Futebol que para as "Cavaladas" - ficavam pouco acessíveis |
Entre os
dois jogos, Gourlade «fisgou-a» bem!
Sabendo que os ex-alunos da Real Casa Pia de Lisboa, que
integravam uma agremiação benemérita, a «Associação do Bem», treinavam aos
domingos de manhã junto da Cerca da instituição casapiana acercou-se deles no
sentido de reforçarem as posições onde o (Belém) Football Club era mais
carente. E assim foi. Manuel Gourlade optou pelo menos óbvio. Não se reforçou
com os habituais ingleses que andavam por Lisboa sempre livres de clubes e disponíveis
para jogar - Eagleson, Ettur ou Gilman - pois mesmo sabendo que o Grupo dos
Pinto Basto jogava com ingleses preferiu reforçar-se com futebolistas
experientes mas portugueses. Ora um grupo só de portugueses vencer um grupo de
ingleses ou mesmo um misto no início do século XX era visto quase como uma
impossibilidade, mas não foi...
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O "Mítico" logradouro entre a calçada da Ajuda (Oeste) e a rua das Casas do Trabalho (Este), onde nasceu e viveu o infortunado Pepe, limitado a Sul pela rua do Embaixador. As Terras do Desembargador, às Salésias. Local de excelência onde se disputavam os raros jogos de futebol realizados em Lisboa, depois da construção da Praça de Touros, no Campo Pequeno, espaço onde se estreou o Futebol em Lisboa pouco antes do Ultimatum inglês a Portugal |
O jogo que
tudo criou e mudou
Na desforra, o certo é que o FC (Belém) venceu, por 1-0, e
essa vitória foi vivida de um modo estrondoso pois o misto português/inglês que
depois deu origem ao Internacional (CIF) era demolidor nos jogos que realizava
frente a outros grupos que não fossem os inalcançáveis com exclusividade
inglesa: Carcavellos Club e Lisbon Cricket Club (Cruz Quebrada). Na
confraternização que se seguiu no Café do Gonçalves (actual Pastelaria Nau de
Belém) surgiu a ideia «Com estes futebolistas - e só portugueses - fazia-se um
grande team!» E assim foi. A ideia de Gourlade resultara na perfeição.
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Os impressos para as quotas do Football Club (Belém) que nos primeiros tempos serviram também como impressos para as quotas do "Glorioso" |
Em 28 de
Fevereiro de 1904 foi apenas concretizado o que ficara decidido em 1903
Juntaram-se, treinaram de manhã e pela tarde, numa
dependência da Farmácia Franco, decidiram fundar o Grupo Sport Lisboa que
depois passaria, em 13 de Setembro de 1908, a Sport Lisboa e Benfica, numa
efeméride com 110 anos a completar neste ano de 2018. Não foi difícil escolher
os primeiros dirigentes. A presidente José Rosa Rodrigues (capitão do Football
Club Belém) e como seus auxiliares os dois empregados da farmácia onde o clube
ficaria instalado por deferência do proprietário da farmácia, Pedro Franco:
Daniel Santos Brito (secretário) e Manuel Gourlade (tesoureiro).
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Primeira categoria do Sport Lisboa em 1907, antes de um jogo com o Internacional/CIF, na Quinta Nova, em Carcavelos. MANUEL GOURLADE em baixo com o casaco vestido e pronto para jogar se um dos onze craques ficasse impossibilitado; Da esquerda para a direita: Em cima: David Fonseca, Henrique Costa, Cândido Rosa Rodrigues, Marcial Costa, Fortunato Levy (capitão) e Carlos França (atrás do capitão); Daniel Queirós Santos, Albano Santos, Manuel Mora (guarda-redes, mais atrás) António Couto e José Cruz Viegas |
Primeiros
tempos do Sport Lisboa
Coube a Manuel Gourlade a maior parte das atitudes - é isso
que se percebe na documentação do Clube (presenças em treinos e iniciativas -
financeiras e organizativas - para dotar o clube de condições para singrar). Se
as redes para as balizas (e provavelmente os postes e as traves) vinham das
embarcações de pesca dos Rosa Rodrigues da Ericeira e Nazaré, o resto era tratado
por Gourlade. Era ele que orientava os treinos, registava as presenças,
adquiria bolas e utensílios ou, sendo poliglota, escrevia para Inglaterra,
fazendo ele do «inglês» que outros clubes tinham (pelo menos um) e o Sport
Lisboa...não. Era ele o «nosso inglês»! Não tanto a jogar mas a facilitar a "logística"!
O «nosso inglês» permitia ao Clube ter acesso, directamente de Inglaterra (Reino Unido), ao melhor que havia para o Futebol em vez de adquirir o que os ingleses a viver em Portugal já não queriam.
O Clube
acima de tudo
É que com a entrada progressiva de casapianos "bons de
bola" relegou-o para a segunda equipa, como guarda-redes, ou seja, «autorrelegou-se»
pois consta que era ele que organizava os plantéis e orientava as duas equipas.
E é dele a ideia (mais uma) de reservar um pouco de energia durante os jogos -
ou pelo menos não a esbanjar em inutilidades durante os encontros - para ter
nos últimos 15 minutos capacidade, se fosse necessário, para empatar jogos
aparentemente perdidos ou vencer jogos aparentemente empatados.
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Segunda categoria do Sport Lisboa, em 1907. As equipas eram fotografadas com a disposição em campo. Da esquerda para a direita: Em cima, os defesas e guarda-redes: Henrique Teixeira, João Persónio (guarda-redes) e José Neto; Ao centro (avançados): Félix Bermudes (capitão), Eduardo Corga, Leopoldo Mocho, António Meireles e Carlos França; Em baixo (médios): Luís Vieira, Cosme Damião e Marcolino Bragança |
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Segunda categoria do Sport Lisboa, em 1905 ou terceira categoria em 1906 ou 1907. As equipas eram fotografadas com a disposição em campo. Da esquerda para a direita: Em cima, os defesas e guarda-redes: Henrique Teixeira, MANUEL GOURLADE (guarda-redes) e Leopoldo Mocho; Ao centro (médios): Carlos Moteiro, Mário Monteiro e Luís Vieira; Em baixo (avançados): António Costa, António Alves, Luís Rodrigues, Eduardo Corga e António Meireles. Equipa que continua na mesa de dissecação de Victor João Carocha o maior especialista mundial em descobrir o que ninguém mais consegue nas imagens da Gloriosa História |
Consta que o
amor ao Clube levou longe de mais o seu esforço
Empolgado com o Clube que depressa passara de mais um clube a
"Glorioso" pois derrotara os mestres invencíveis do Cabo Submarino,
em plena Quinta Nova, Carcavelos, o Carcavellos Club (10 de Fevereiro de 1907)
e depois sofrendo com a deserção no Verão desse ano, para o Sporting CP, de
vários associados - quatro fundadores - incluindo sete futebolistas titulares e
mais um futebolista reformado a jogar no segundo team - Manuel Gourlade fez com que contas da Farmácia e do Clube se
confundissem. Em breve deixou a Farmácia Franco, mas deslocando-se com o Clube
de Belém para Benfica o apego nas margens do Tejo eram mais fortes pois foi aí
que passou a "ganhar a vida" como tradutor entre docas e navios que
aportavam a Lisboa.